Por Ursula Ribeiro de Almeida. Publicado na revista Gestão & Negócios
É fato consolidado que os dados constituem insumo básico para a economia digital na medida em que são matéria-prima para o desenvolvimento de inteligência artificial, algoritmo, aprendizado de máquinas e outras tecnologias da Indústria 4.0. As gigantes de tecnologia construíram seus impérios globais por meio da coleta massiva de dados em troca de serviços aos usuários. Ao se inscrever em uma rede social, por exemplo, o usuário fornece seus dados pessoais, revela suas preferências, contatos próximos, locais frequentados e outras informações que permitem delimitar seu perfil comportamental, psicológico, social e até político.
Com base nessas informações, a plataforma digital obtém receita por meio da comercialização de anúncios, cujos sistemas algorítmicos são cada vez mais sofisticados para direcionar os produtos e serviços para o público-alvo de forma mais assertiva. Mesmo a mera utilização da internet pode conter relevantes informações pessoais, como revelou uma reportagem investigativa de 2016 de jornalistas alemães sobre uma extensão de navegador de internet que rastreava os dados de navegação de usuários e os vendia a terceiros. A empresa responsável pela extensão alegou que os dados eram vendidos de forma anonimizada, porém os jornalistas conseguiram identificar mais de 50 usuários, incluindo informações sobre investigações policiais em andamento, detalhes financeiros sensíveis de negócios e informações que indicavam a orientação sexual de um juiz.
O valor comercial dos dados é conhecido há algum tempo. Lembramos da capa da Revista Times de 2017, que teve grande repercussão ao destacar que o recurso mais valioso do mundo eram os dados e abordou seu impacto na regulação da concorrência. Em 2021, o valor de mercado da Meta (na qual estão inseridos o Facebook, o Instagram e o WhatsApp), da Amazon, da Apple e da Microsoft somava 7,5 trilhões de dólares e a receita das empresas totalizou 197 bilhões de dólares no mesmo ano. Embora já houvesse sinalização da importância dos dados em operações comerciais, as gigantes de tecnologia conseguiram crescer exponencialmente nos últimos anos também por meio da compra de startups e outras empresas sem grandes sobressaltos com as autoridades concorrenciais. A título de exemplo, o Facebook comprou o Instagram em 2012 por 1 bilhão de dólares e, na época, a transação foi revista pela Comissão de Comércio Federal dos Estados Unidos (FTC – Federal Trade Commission) sem realizar audiências públicas ou emitir um relatório público.
O poder sem precedentes alcançado pelas gigantes de tecnologia por meio do controle de dados passou a despertar, tardiamente, o alerta das autoridades de controle da concorrência ao examinar operações de fusões e aquisições e práticas anticompetitivas. Em 2019, as autoridades concorrenciais dos países que integram o G7 firmaram entendimento comum sobre a Concorrência na economia digital. A Alemanha adotou a nona emenda da Lei contra Restrições da Competição em 2017 para prever regras específicas para a economia digital e, em 2021, foi aprovada a Décima Emenda da Lei para implementar uma estrutura regulatória para a concorrência digital. Na mesma esteira, em abril de 2022 a Coréia do Sul aprovou emendas à Lei de Prevenção à Concorrência Desleal e Proteção de Segredo de Negócio para expandir o escopo da proteção de dados na definição de concorrência desleal.
Além da evolução da legislação concorrencial, é notória a maior atuação das autoridades quanto à fiscalização de atos anticoncorrenciais. Em 2016, a Comissão Europeia aprovou a aquisição do LinkedIn pela Microsoft mediante a apresentação de compromissos da Microsoft para garantir que concorrentes do LinkedIn pudessem utilizar os serviços da Microsoft. No ano seguinte, a Comissão Europeia aplicou multa de 110 milhões de euros ao Facebook por fornecer informações enganosas sobre a compra do WhatsApp. Mais recentemente, em 2021, a autoridade reguladora da concorrência francesa multou o Google em 220 milhões de euros por abuso de posição dominante no mercado de anúncios online.
Em agosto de 2020, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, órgão competente no Brasil para defesa da concorrência, publicou um documento em que afirmava que poderia, também, atuar como autoridade de proteção de dados pessoais. Porém, optou-se por criar uma autoridade específica para regulamentar a LGPD e fiscalizar a sua aplicação: a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, que foi recentemente transformada em autarquia federal. A pretensão do CADE de atuar como autoridade de proteção de dados pessoais sinaliza o seu conhecimento sobre a relevância dos dados na concorrência. Ademais, a ANPD e o CADE firmaram um convênio de cooperação para atuação em casos de proteção de dados pessoais e defesa da concorrência. A sinergia entre as duas autoridades é essencial para investigação de operação de fusões e aquisições que possam prejudicar a concorrência, bem como práticas que violem a proteção de dados dos titulares e, ao mesmo tempo, configuram ato anticoncorrencial.
É importante destacar que a fiscalização de práticas anticoncorrenciais na economia digital impõe grandes desafios ao CADE, pois é necessário: (i) examinar questões além do preço, na medida em que os produtos e serviços geralmente são ofertados ao consumidor a preço zero; (ii) considerar o bem-estar do consumidor sob aspectos relacionados ao uso dos seus dados e sua privacidade; (iii) readequar a definição do mercado relevante para o contexto da economia digital; (iv) aprimorar as análises prospectivas do mercado ao definir os efeitos positivos e negativos da operação; (v) desenvolver remédios adequados ao contexto do mercado digital.