OS CONTRATOS EMPRESARIAIS E O RISCO DE NOVAS EPIDEMIAS

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Ursula Ribeiro de Almeida

A epidemia de coronavírus teve seu epicentro inicialmente em Wuhan na China e em poucos
meses se espalhou para o mundo inteiro. Para conter a disseminação do vírus, muitos países
adotaram medidas de isolamento social, cujos efeitos na economia global são devastadores
em razão da paralisação de diversas atividades econômicas, desemprego e redução abrupta do
consumo.

A crise econômica atingiu diretamente os contratos empresariais diante da dificuldade ou
impossibilidade de cumprir os compromissos. Muitos agentes econômicos buscam renegociar
obrigações contratuais, outros rescindem ou simplesmente descumprem o contrato.
Frequentemente, as disputas contratuais são levadas ao Poder Judiciário para se requer a
rescisão, a suspensão temporária das obrigações ou revisão de cláusulas contratuais, pois os
efeitos da pandemia configurariam caso fortuito ou força maior (art. 393 do Código Civil), ou
teriam provocado onerosidade excessiva a um dos contratantes (art. 478 e ss. do Código Civil).

Ainda será necessário aguardar alguns anos para se examinar a posição dos Tribunais a
respeito do tema, já que cada tipo de contrato tem peculiaridades específicas. De antemão se
pode antecipar a tendência de cautela em relação à intervenção na autonomia privada, como
indica o Superior Tribunal de Justiça em julgado de 2016: “O controle judicial sobre eventuais
cláusulas abusivas em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do
Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área empresarial,
observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes desse setor da economia.” [1]
Ademais, a recente Lei da Liberdade Econômica reforçou a autonomia privada ao prever que
“nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual (art. 421, par. único, do Código Civil, incluído pela Lei
n° 13.874/2019).

O alerta mundial da pandemia de COVID-19 despertou os tomadores de decisão para o risco
iminente de novas epidemias ou pandemias, que precisam ser levadas em consideração ao se
negociar contratos empresariais.

O risco de novas epidemias e pandemias

Em 2018 a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou orientações aos Estados sobre
gerenciamento de epidemias, explicando os fatores de risco que expõe a humidade a surtos
epidêmicos virais e relembrou casos recentes que representaram desafio à saúde em âmbito
global. [2]

Desde a década de 70 do século XX se tem a equivocada sensação de segurança contra
microrganismos em razão da vacinação em massa, evolução dos antibióticos e outros
tratamentos. A sensação é ilusória porque nos últimos 50 anos foram descobertos mais de 1.500 novos patógenos dos quais 70% tem origem animal. Embora a maior parcela não tenha
afetado a saúde humana, só o HIV – descoberto em 1983 – infectou mais de 70 milhões de
pessoas em todo o mundo e matou aproximadamente 35 milhões no mesmo período.

O risco considerável de novas epidemias e pandemias se deve a um conjunto de fatores: a) a
criação de animais destinados ao consumo humano em confinamento e em contato com
outras espécies, inclusive animais silvestres devido ao aumento do desmatamento; b) a
organização da sociedade em centros urbanos densamente populosos, facilitando a
contaminação entre humanos; c) o intenso deslocamento populacional no âmbito local e
global, que aumenta a possibilitando de pessoa contaminada levar o vírus para outra região.

As mais recentes epidemias confirmam a existência do risco à saúde:

– SARS (Síndrome respiratória aguda) – 2003: afetou mais de 8 mil pessoas, matando
uma de cada 10 pessoas, causando pânico ao redor do mundo e prejuízo econômico,
especialmente em países asiáticos;

– H1N1 – 2009: foi a primeira pandemia de influenza do século XXI. Os efeitos não foram
tão severos como esperado em razão das medidas adotadas, muitas delas desenvolvidas
no surto de SARS;

– MERS – 2012/2013: também é uma síndrome respiratória que se espalhou fatalmente
em diferentes países do Oriente Médio;

– Ebola – 2014: surgiu no Oeste da África e se espalhou rapidamente pela região,
acendendo o sinal de alerta ao redor do mundo;

– Zika – 2015: a epidemia do vírus transmitido pelo Aedes Aegypti causou uma onda de
crianças com microcefalia. Quase 70 países, um na sequência do outro, teve sua própria
epidemia de zika. É provável que surjam outras epidemias em razão da alta densidade
populacional na região do mosquito transmissor.

Considerando os fatores de risco e as recentes epidemias, há dois anos a OMS já alertava que
era provável o surgimento de novo vírus e sua rápida disseminação pelo mundo, ainda que
não fosse possível identificar previamente quando e onde surgiria. Recomendava a OMS o
monitoramento de infecções de animais destinados ao consumo humano e a agilidade na
identificação do vírus para tentar conter a sua disseminação.

Assim, para os estudiosos de saúde pública, o surgimento de uma epidemia não é um
acontecimento inesperado ou imprevisível. O que não se pode prever é a data do início e o
local de surgimento de uma nova epidemia, porém as autoridades podem adotar medidas para
evitar a sua disseminação e buscar minimizar os fatores de risco de contaminação.

Os contratos empresariais e a alocação de risco

A crise global de COVID-19 trouxe à luz o risco que novos vírus podem trazer não somente para
a saúde humana, mas também para a economia em escala internacional. Além disso, revela
que não se trata de fato imprevisível, pelo contrário, a forma que a sociedade se comporta no
século XXI favorece a disseminação de vírus, mesmo com a tecnologia disponível na área da
saúde.

Diante disso, algumas questões se colocam nos contratos empresariais: novas epidemias ou
pandemias poderão ser consideradas caso fortuito ou força maior em contratos firmados a
partir de 2020? É necessário prever no contrato a sua ocorrência?

O que é caso fortuito ou força maior? De acordo com a legislação brasileira, o caso
fortuito ou força maior é “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou
impedir” (art. 393, par. único, do Código Civil). Em regra, prevalece o princípio do pacta
sunt servanda, ou seja, as obrigações contratuais devem ser cumpridas segundo os
termos em que foram previstas no contrato. Entretanto, se sobrevier um fato irresistível
ou inevitável que impeça o cumprimento do contrato, “é uma causa de
irresponsabilidade, quer da inexecução completa e definitiva da obrigação, quer da
simples mora enquanto perdurar.” [3] Não é considerado caso fortuito ou força maior as
dificuldades inerentes ao mundo dos negócios, como, por exemplo, aumento dos juros
bancários, mudança na política cambial ou inflação elevada.

Exclusão do caso fortuito ou força maior. Não se aplica o caso fortuito ou força maior
aos contratos aleatórios, como o seguro e a compra e venda de safra futura. Ademais, é
possível ainda que o contratante se responsabilize a cumprir o contrato ainda que haja
evento futuro irresistível, já que o artigo 393, caput, do Código Civil, disciplina que o
devedor não responde por caso fortuito ou força maior se “expressamente não se
houver por eles responsabilizado”.

Novas epidemias ou pandemias podem ser considerados caso fortuito ou força maior?
No âmbito dos contratos empresariais, “os contratantes assumem o risco dos
acontecimentos pela falta de diligência no momento de sua celebração. O princípio da
obrigatoriedade dos contratos não pode ser violado perante dificuldades ordinárias de
cumprimento, por fatores externos perfeitamente previsíveis.” [4] Considerando que novas
epidemias são previsíveis e esse fato se tornou conhecido em razão dos efeitos
devastadores na atividade econômica provocados pela COVID-19, pode-se dizer que se
trata de fator externo previsível? Embora a ciência aponte o risco iminente, talvez não
seja adequado tratar a possibilidade de outras epidemias como fator previsível, pois a
própria OMS pondera que não se sabe quando e onde haverá um novo surto. Ademais,
os fatores de risco não estão sob o controle dos agentes econômicos.

O que disciplinar nos contratos empresariais neste novo cenário? Segundo Paula
Forgioni, “a elaboração do contrato, o processo de barganha e, por fim, a redação do
instrumento são fruto de um ‘cherry-picking’, no qual se pinçam as situações que se
quer disciplinar. As outras acabam ignoradas, ou porque delas não se têm ciência, ou
para que sua negociação não impeça a finalização do negócio.” [5] Ou seja, o contrato não
disciplina todas as contingências que as partes podem enfrentar seja devido à
impossibilidade de se prever o futuro, ou pela improbabilidade de certos fatos
ocorrerem. [6]

As questões não tratadas no contrato são reguladas pela legislação vigente, ou, caso não haja
previsão legal específica, a solução da disputa se dará por negociação, mediação, arbitragem
ou pela via judicial. Assim, se o contrato não tratar dos possíveis efeitos de nova epidemia
nas obrigações contratuais, será necessário discutir as consequências na relação entre as
partes depois que o problema surgir, como ocorre atualmente com a pandemia de
coronavírus. Dentre outros argumentos, será possível debater se uma nova epidemia é fator
imprevisível pelos agentes econômicos – considerando as informações científicas amplamente
divulgadas sobre o tema em razão do coronavírus –, ou se o fato é imprevisível porque até
mesmo os cientistas não podem antecipar quando e onde vai ocorrer uma nova epidemia.

Dependendo da natureza do contrato, pode ser adequado para as partes interessadas a
regulamentação de algumas das possíveis consequências de nova epidemia para evitar
futura disputa judicial. Destaca-se que a Lei da Liberdade Econômica valorizou a autonomia
privada para regular as suas relações ao prever que “as partes negociantes poderão
estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus
pressupostos de revisão ou de resolução”, devendo ser respeitada “a alocação de riscos
definida pelas partes” (art. 451-A, I e II, do Código Civil, introduzido pela Lei n° 13.874/2019).
Nos contratos de locação de imóvel comercial é apropriado disciplinar a situação em que o
inquilino seja impossibilitado de utilizar o imóvel por determinação das autoridades legais por
questão de saúde pública. Pode-se prever a redução temporária do aluguel, a suspensão da
exigibilidade do aluguel, a contratação de seguro especial, a rescisão do contrato, dentre
outras possibilidades.

Portanto, a disciplina contratual dos possíveis efeitos de uma nova epidemia decorre de uma
escolha dos agentes econômicos, que podem preferir discutir o problema depois do fato
consumado, ou se antecipar para minimizar a insegurança e imprevisibilidade da relação
contratual.

[1] STJ, Terceira Turma, REsp 1.447.082/TO, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 10/05/2016, DJe
13/05/2016.
[2] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Managing epidemics: Key facts about major deadly disease.
Luxembourg, 2018. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/managing-
epidemics-interactive.pdf
[3] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 27.
[4] WANDERER, Bertrand. Lesão e onerosidade excessiva nos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva,
2018, p. 166.
[5] FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação, 4ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2019, p. 87.
[6] Idem, p. 157.

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