Diogo Gregório Burilio
A evolução da tributação do comércio eletrônico pelo ICMS é um interessante caso sobre a capacidade do ordenamento jurídico acompanhar as mudanças da sociedade e atender às demandas surgidas destas mudanças, notadamente no campo tecnológico. Com o crescimento do comércio eletrônico (e-commerce) no país, superando limitações territoriais, surgem os conflitos entre os Estados quanto à arrecadação do ICMS.
A incidência do ICMS sobre operações interestaduais não-presenciais não é uma novidade em nosso ordenamento, sendo prevista desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Para estas operações, realizadas por via telefônica ou outro meio de comunicação, o artigo 155, inciso VII, da Constituição Federal previa que o ICMS seria devido integralmente ao Estado de origem da mercadoria quando destinada a consumidor não-contribuinte do imposto, calculado pela sua alíquota interna.
Mesmo após a publicação da Lei Complementar n° 87/96 – a Lei Kandir –, que dispôs as regras gerais do ICMS a serem observadas pelos Estados, a incidência do imposto sobre estas operações não gerava grandes questionamentos, visto que o comércio não-presencial ainda era pouco significativo.
Todavia, tudo mudou com a popularização do acesso à internet na virada do século XXI e o crescimento das plataformas de comércio eletrônico, que se transformaram em uma alternativa concreta aos estabelecimentos comerciais físicos.
A Roncato Advogados esclarece as alterações na sistemática de tributação do ICMS que ocorreu em razão do aumento do E-commerce, bem como aponta a inconstitucionalidade das leis estaduais que responsabilizam solidariamente as plataformas de Marketplace pelo recolhimento de ICMS.
1 – E-commerce e o aumento desproporcional da arrecadação de ICMS no Sul e Sudeste
O e-commerce permite que estabelecimentos comerciais promovam venda de mercadorias para todos os Estados em um volume muito maior do que os antigos métodos de venda não-presencial, permitindo, que um estabelecimento localizado em São Paulo, por exemplo, possa concorrer diretamente com o comércio local de outros Estados, mesmo sem presença física nestes locais.
Logo, o advento do e-commerce começou a gerar distorções na arrecadação do ICMS entre os Estados, na medida em que as maiores empresas deste ramo se localizavam em Estados das Regiões Sul e Sudeste, recolhendo o ICMS ao seu estado de origem, enquanto que impactavam negativamente o comércio local das demais regiões. Em outras palavras, o comércio eletrônico propiciou o aumento da arrecadação do ICMS para os Estados do Sul e do Sudeste, ao passo que reduziu a arrecadação deste imposto para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
2 – Protocolo ICMS n° 21/2011 e sua inconstitucionalidade
Como medida de reduzir tais disparidades de arrecadação, o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), órgão formado pelas Secretarias de Fazenda de todos os Estados da Federação Brasileira, aprovou o Protocolo ICMS nº 21/2011, que previa a incidência de uma diferença de ICMS, em favor dos Estados de destino, nas vendas interestaduais chamadas não presenciais, notadamente aquelas realizadas por telemarketing e pelo comércio eletrônico.
Em 2014, o Protocolo ICMS 21/2011 foi declarado inconstitucional, pelo STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidades nºs 4628 e 4713, que entendeu que os Estados, por meio do CONFAZ, não têm competência para inovar nas matérias relativas ao ICMS que resultassem em alteração na distribuição da arrecadação desse imposto entre os Estados. Para tanto, o STF alertou que seria necessária (i) a edição de uma emenda constitucional, (ii) seguida da edição de uma lei complementar.
3 – Emenda Constitucional n° 87/2015: a nova sistemática de tributação do ICMS
Nesse contexto, foi editada pelo Congresso Nacional a EC nº 87/2015, que alterou toda a sistemática de tributação das operações interestaduais pelo ICMS, em clara tentativa de minimizar a desigualdade na distribuição de arrecadação desse imposto, repartindo entre os Estados de origem e de destino da mercadoria o imposto devido nas operações com consumidores finais não contribuintes do ICMS.
4 – A Regulamentação do ICMS pelo Convênio ICMS N° 93/2015
O Convênio ICMS nº 93/2015, com vigência a partir de janeiro de 2016, que efetivamente equiparou as operações interestaduais destinadas a não-contribuintes do ICMS àquelas promovidas pelos contribuintes regulares do imposto, sendo exigido dois recolhimentos distintos a título e ICMS sobre tais operações: (i) o ICMS devido ao estado de origem, calculado a alíquota interestadual de 7% ou 12% conforme os Estado de destino da mercadoria e (ii) o ICMS devido ao Estado de destino, correspondente à diferença entre a alíquota interna deste Estado e a alíquota interestadual.
As inovações trazidas pelo Convênio CONFAZ nº 93/2015, no entanto, são problemáticas em diversos aspectos.
Vício formal. Embora a repartição do ICMS das operações interestaduais com não-contribuintes tenha fundamento constitucional após a Emenda nº 87/2015, não se trata de regra autoaplicável, como anteriormente especificado pelo STF no julgamento que julgou inconstitucional o Convênio CONFAZ nº 22/2011. As normas gerais em matéria tributária devem necessariamente ser regulamentadas por meio de Lei Complementar, como exigido pelo artigo 146, III da Constituição Federal, e não por um normativo que sequer tem natureza de Lei em sentido estrito, inovando o ordenamento sem o devido amparo na legislação infraconstitucional. Os Tribunais Estaduais têm reconhecido a legitimidade do Convênio CONFAZ nº 93/2015 mesmo sem a prévia regulamentação por lei complementar, todavia, tais decisões denotam mais uma preocupação politica com a queda da arrecadação estadual do que a hierarquia das normas vigente em nosso ordenamento.
Aumento excessivo da complexidade das operações. Do ponto de vista material, a equiparação das operações destinadas a não-contribuintes do ICMS às operações destinadas a contribuintes regulares do imposto provoca um aumento excessivo da burocracia nestas operações comerciais. Nas operações destinadas ao contribuinte do imposto, a responsabilidade pelo recolhimento da diferença de alíquota do ICMS é do adquirente da mercadoria, sendo eu este recolhimento já está contemplado no fluxo de obrigações acessórias exigidas pela autoridade fiscal de seu Estado.
Já nas operações destinadas a não contribuinte do imposto, o recolhimento da diferença de alíquota do ICMS é de responsabilidade do vendedor, que além das obrigações regulares exigidas pela autoridade fiscal e seu domicílio, deverá promover o recolhimento do ICMS destinado a cada Estado de destino antes da remessa da mercadoria, nos termos da legislação interna de cada estado, ou promover a sua inscrição no Cadastro de Contribuintes de cada um dos Estados que opera com habitualidade, permitindo o recolhimento mensal do diferencial e alíquota, ao invés do recolhimento individual sobre cada operação. Logo, o operador de comércio eletrônico não está sujeito apenas às obrigações acessórias do seu Estado de domicílio, mas também às obrigações exigidas por todos os Estados em que tenha consumidores.
Aumento do custo das operações. O diferencial de alíquota provoca efetivo aumento dos custos do estabelecimento fornecedor, na medida em que o Convênio CONFAZ nº 93/15 dispõe expressamente, em sua clausula terceira, que apenas a parcela do ICMS devido ao Estado de origem poderá ser compensado com os créditos das operações anteriores, devendo a parcela correspondente à diferença de alíquota ao Estado de destino da mercadoria ser recolhida em dinheiro, mesmo que a empresa possua saldo credor de ICMS, resultando em desembolsos financeiros que não existiam antes da vigência da Emenda Constitucional nº 87/15.
Empresas do Simples Nacional. A cláusula nona do aludido Convênio prevê expressamente a obrigatoriedade do recolhimento da diferença de alíquota de ICMS devido ao estado de destino pelas empresas optantes por este regime de tributação, muito embora a Lei Complementar nº 123/06 preveja o recolhimento unificado do ICMS junto aos demais tributos federais em um único documento, independentemente de se tratar de operações internas ou interestaduais. A cláusula nona do Convênio ICMS nº 93/15 teve a sua eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, em medida cautelar deferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.464, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
5 – A nova empreitada dos Estados para aumentar a arrecadação de ICMS: a inconstitucionalidade da responsabilização dos Marketplace
Muito embora o Convênio CONFAZ n° 93/15 tenha tornado as operações de comercio eletrônico mais burocráticas e onerosas para as empresas, a modalidade continuou crescendo no país, com resultados cada vez mais expressivos. E novo crescimento se deu por dois motivos em tempos recentes: (i) o aumento das ofertas de marketplaces, plataformas de comércio já estabelecidas que permitem que estabelecimentos que não possuem condições de desenvolver plataformas próprias possam realizar operações de comércio eletrônico, e (ii) a pandemia da COVID-19, que obrigou o fechamento dos estabelecimentos comerciais físicos, que tiveram que migrar para plataformas eletrônicas de modo a mitigar o prejuízo financeiro e viabilizar sua atividade.
Com o crescimento do e-commerce, os Estados novamente buscam medidas para garantir a arrecadação do ICMS.
O Estado do Rio de Janeiro, no mês de abril deste ano, aprovou a Lei nº 8.795, que dispôs sobre a responsabilidade da plataforma de marketplace que intermediar a operação, operacionalizar a transação financeira e o acompanhamento do pedido, sobre o ICMS eventualmente não recolhido pelo efetivo vendedor da mercadoria, em tratamento também adotado pelos pelos Estados do Mato Grosso (Lei nº 11.081/2020), Bahia (Lei nº 14.183/2019/) e Ceará (Lei nº 16.904/2019).
Em que pese a facilidade para o Estado de transferir a responsabilidade tributária e consequentemente o dever de fiscalização do recolhimento do imposto devido pelos lojistas para as grandes plataformas de comércio eletrônico, tal medida é manifestamente ilegal.
O Código Tributário Nacional, estabelecido na Lei n° 5.172/66, traz regras específicas sobre a responsabilidade de terceiros perante a obrigação tributária, que somente pode ser atribuída: (i) às pessoas expressamente designadas na aludida lei, como os responsáveis por sucessão empresarial, os sócios ou administradores que atuarem em descumprimento à lei ou ao contrato social da empresa, entre outras e (ii) as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador do tributo.
O interesse comum, necessário para a configuração da responsabilização solidária de terceiros, exige necessariamente uma atuação conjunta dos responsáveis para a obtenção de benefício ou vantagem econômica decorrente do inadimplemento da obrigação tributária, como parte da mesma operação que originou o fato gerador do tributo, como por exemplo, a empresa que adquire mercadoria sem nota fiscal.
No caso das plataformas de Marketplace, estas não são parte efetiva da operação comercial entre o vendedor e o consumidor, apenas servindo de intermediário para que estes se conectem. A plataforma não é responsável pela entrega ou pagamento do produto, já que toda negociação e concretização de negócio são realizadas diretamente entre comprador e vendedor, sem sua intervenção, que somente disponibiliza o ambiente virtual para que a operação ocorra.
Todas as obrigações decorrentes da compra e venda são de responsabilidade exclusiva do vendedor, que deve promover a entrega da mercadoria, a emissão da nota fiscal e o cumprimento de todas as obrigações acessórias. Desta forma, dada a atuação limitada do Marketplace na operação comercial, não há que se falar em interesse comum capaz de atrair a responsabilidade tributária, visto que a inadimplência da obrigação pelo vendedor não lhe traz qualquer vantagem concreta, por se tratar de simples intermediador, e não parte da relação comercial.
E destaque-se que, o STF, no julgamento do RE 562276, em 03/11/2010, sob o rito de repercussão geral, já firmou o entendimento quanto à impossibilidade de o legislador criar novos casos de responsabilidade tributária sem a observância dos requisitos ou as regras matrizes de responsabilidade de terceiros estabelecidas pelo CTN, firmado precedente favorável às plataformas de Marketplace que queiram afastar judicialmente as responsabilidade indevidamente atribuída pela Lei Estadual.
Seja no malfadado Convênio Confaz n° 22/2011, cujas disposições acabaram sendo estabelecidas pela Emenda Constitucional n° 87/2015, seja na Lei fluminense nº 8.795/2020, é nítido o intuito dos Estados em evitar o prejuízo da arrecadação, visando corrigir eventuais distorções na tributação e de fato o ICMS pode ser utilizado para tal finalidade, visto que, este imposto também possui natureza extrafiscal. No entanto, tais medidas, por mais bem intencionadas, não podem ser realizadas em descompasso com o ordenamento vigente, onerando indevidamente os contribuintes e até mesmo inviabilizando toda a atividade de comércio eletrônico, com efeitos negativos em todo o mercado, especialmente em no atual momento de crise econômica.