Por Rafael Purcinelli. Artigo publicado pelo Conjur
Como tema amplamente controvertido no cenário tributário nacional, se sobressai a questão sobre a possibilidade ou não de tributação pelo IRPJ e CSLL sobre os benefícios de ICMS concedidos pelos estados e Distrito Federal.
O artigo 30, §4º e §5º, da Lei 12.973/2014, enuncia que só não incide o IRPJ e CSLL sobre subvenções para investimento, concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, e as doações feitas pelo poder público, de sorte que não escaparia à incidência da tributação sobre incentivos fiscais caracterizados como subvenções de custeio.
Subvenções de custeio se referem a incentivos destinados ao socorro pontual da empresa ou de segmento econômico para a manutenção da operação. Tal entendimento é seguido pela Receita Federal do Brasil pela Solução de Consulta Disit/SRRF01 nº 1009/2020.
Por outro lado, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem entendimento mais benéfico aos contribuintes, pois entende que todos os incentivos fiscais se caracterizam como subvenções para investimento, independentemente do tipo, como os exemplos dos créditos presumidos, redução da base de cálculo e isenções [1].
Portanto, vê-se que a polêmica quanto ao tema já começa na própria interpretação que os órgãos da União Federal dão ao que se pode caracterizar como subvenção de investimento e subvenção de custeio para fins de não incidência do IRPJ e CSLL prevista no artigo 30, §4º e §5º, da Lei 12.973/2014.
No âmbito do judiciário, o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do EREsp 1.443.771/RS, enfrentou a questão sob o ponto de vista específico da concessão de créditos presumidos de ICMS, restando destacado naquela oportunidade que “A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação”.
Em que pese a importância do julgado, a linha adotada no julgado destacado acima não ressoava de forma plena com os demais Tribunais Regionais Federais, posto que não há decisão que reconheça de forma vinculante a não incidência do IRPJ e CSLL sobre incentivos fiscais concedidos pelo ente federado na forma de subvenções para investimento, ou que faça, tal como faz a Receita Federal, a distinção quanto à forma de subvenção.
Em razão disso, alguns TRFs só aplicavam o precedente como subvenção de investimento quando o incentivo fiscal no caso concreto sob análise tratava de crédito presumido de ICMS, legitimando, assim, a aplicação do artigo 30, §4º e §5º, da Lei 12.973/2014 para fins de não incidência do IRPJ e CSLL.
Não obstante todo esse quadro jurisprudencial sobre o tema, veio a conhecimento do STJ um outro processo com quadro fático distinto, no qual o contribuinte não buscava a não incidência de IRPJ e CSLL sobre créditos presumidos de ICMS, mas, sim, sobre benefício fiscal outorgado pelo estado de Santa Catarina de diferimento do pagamento do tributo, consubstanciado esse diferimento pelo Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense (Prodec).
Esse segundo caso foi julgado recentemente no REsp nº 1.222.547/RS, quando a 1ª Turma do STJ concluiu que os benefícios e incentivos dos estados não deveriam ser considerados lucros ou rendimentos para fins da incidência da cobrança pela União, posto que seria o mesmo que retirar ou suplantar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o estado-membro outorgou no exercício de sua competência tributária, além de se perfazer em um verdadeiro abalo à autonomia federativa do ente que concedeu o incentivo.
Como salientado anteriormente, os TRFs — sobretudo o Tribunal Regional Federal da 4ª Região — só aplicavam a não incidência prevista no artigo 30, §4º e §5º, da Lei 12.973/2014 para os casos de incentivos fiscais de crédito presumido de ICMS, com fundamento no EREsp 1.443.771/RS e, também, em razão da insuficiência de julgados vinculantes sobre o que era subvenção de investimento e subvenção de custeio.
Contudo, o mais recente julgado do REsp nº 1.222.547/RS veio mostrar que, na verdade, a problemática é mais ampla do que a mera conceituação de subvenção de investimento e subvenção de custeio, posto que está em jogo questão da própria finalidade do incentivo fiscal concedido e, também, questão sobre a intromissão indevida da União nesses incentivos concedidos pelos estados-membros e Distrito Federal, abalando a ideia do pacto federativo.
De fato, a Constituição, em seu artigo 155, inciso XII, alínea g, atribuiu aos estados-membros e ao Distrito Federal competência para instituir o ICMS e, por consequência, outorgar incentivos fiscais, isenções e benefícios, atendidos os pressupostos legais.
Porém, ao permitir que a União tribute essas benesses concedidas pelos estados, considerando-as como receitas ou lucros para fins de incidência de IRPJ e CSLL, automaticamente se esvazia por completo o próprio intuito infralegal da norma estatal que o concedeu, o que acaba também, por consequência, violando o próprio valor constitucional do pacto federativo, pois a União acaba por se imiscuir e interferir indiretamente na autonomia dos estados-membros.
Corroborando o acerto da decisão do STJ no REsp nº 1.222.547/RS sobre a questão, talvez sobre esta desarrazoada “intervenção” indireta na autonomia do estado pela União, a doutrina já o destacava quando da discussão do tão conhecido Tema 69 do STF, onde já se entendia prudentemente afastar tal intromissão da União, por configurar burla notória à Federação, in verbis:
“[…] entendimento contrário ofenderia o princípio federativo, na medida em que tributar crédito de ICMS implica intervir na tributação estadual, afetando a eficácia das imunidades e incentivos e fazendo com que, à impossibilidade de tributação ou renúncia tributária dos Estados corresponda tributação pela União, em transferência de recursos absolutamente desarrazoada, contrária à finalidade das normas de imunidade ou de incentivos” [2].
Ademais, sabe-se que a base de cálculo haverá sempre que guardar conformidade com aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos ou absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência.
No caso da tributação de IRPJ e CSLL sobre benefícios e incentivos concedidos pelos estados, vê-se que houve tal desvirtuamento da base de cálculo, que nada tem a ver com a hipótese de incidência do IRPJ e da CSLL.
Outro ponto que reforça a tese do Superior Tribunal de Justiça é o fato de que a própria União já reconheceu a importância da concessão de incentivo fiscal pelos estados-membros e municípios. É o que se vê no artigo 4º da Lei nº 11.945/2009, onde prevê que ficam isentas do IRPJ e da CSLL as receitas decorrentes de valores em espécie pagos ou creditados pelos Estados e Municípios, relativos ao ICMS e ao ISS.
Vê-se que no referido dispositivo a União previu a isenção do IRPJ e da CSLL sobre as receitas decorrentes de valores em espécie pagos ou creditados pelos estados e municípios a título de ICMS e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de mercadorias e serviços.
Ora, se a União prevê essa isenção no caso do programa acima, sobre outorga de crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de mercadorias e serviços, também há de ser assim no caso de qualquer outro benefício e incentivo destes entes concedidos às pessoas jurídicas, não havendo razão de ser para que a norma só se restrinja à sua literalidade expressa.
Portanto, é de se concluir que a decisão do STJ foi correta quanto ao tema, posto que pautada em preceitos constitucionais garantistas do pacto federativo e de não intervenção na autonomia do ente federativo que concede tais benefícios aos contribuintes pessoas jurídicas, bem como respeita a própria lógica e intuito da concessão dessas benesses, não esvaziando por completo a sua própria razão de ser, e evitando que o mesmo tributo não cobrado pelos estados o seja pela União por vias indiretas e disfarçadas, o que vai muito além das teses dos Tribunais Regionais Federais, que se limitavam apenas à literalidade do artigo 30, §4º e §5º, da Lei 12.973/2014, que indevidamente só o aplicavam aos casos concretos de incentivos consubstanciados por crédito presumido de ICMS.
[1] Acórdão nº 3301-009.571 (julgamento em 27.01.2021): “nos termos da Lei Complementar nº 160/2017, desde que atendido seus requisitos, todos os incentivos fiscais de ICMS representam subvenção para investimento, não configurando receita e, por isso, não integrando a base de cálculo das contribuições”.
[2] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário — Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 15ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 524