“A mulher da casa abandonada”: quais os limites para a exposição dos envolvidos?

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Marcela Gomes Gambardella

Foto: Simon Plestenjak/UOL

Lançado recentemente pela Folha de São Paulo, o podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, produzido e apresentado pelo jornalista Chico Felitti, teve uma repercussão surpreendente. A história verídica por trás é de Margarida Bonetti, uma senhora que morava em um casarão abandonado em Higienópolis, área nobre da cidade de São Paulo. O podcast se popularizou escalonadamente até o local começar a ser visitado diariamente.

Na vizinhança, Margarida se apresentava como Mari e era conhecida como “bruxa” no bairro. Chico tenta entender por que uma senhora vive naquela situação em uma casa que ocupa um terreno milionário e que resiste em um bairro tomado por prédios de alto padrão.

Pouco a pouco, Chico descobre que a vida da mulher que, a princípio, ele havia pensado que teria o potencial de ser consequência de uma situação triste de abandono e misoginia, na verdade é marcada por anos de crueldade e barbárie, seguida por impunidade e ostracismo.

A figura excêntrica que andava pelo bairro com uma espessa camada de pomada branca no rosto guardava segredos perversos. O jornalista descobriu que Margarida faz parte de uma família bastante tradicional de São Paulo e que ela fugiu dos Estados Unidos por ser procurada pelo FBI após manter uma mulher em situação análoga à escravidão por mais de 20 anos, além de a torturar e negar atendimento médico. Isso tudo foi descoberto há pouco mais de 20 anos, quando a vítima finalmente teve condições e apoio para denunciar o que tinha vivido sob o teto de Margarida e seu marido, Renê Bonetti.

Renê foi julgado e condenado nos Estados Unidos, cumpriu pena em regime fechado e hoje vive livremente em terras norte-americanas. Margarida, após o início das investigações, fugiu ao Brasil e aqui ficou. Ficou por anos sendo socialmente tolerada em um bairro que tolera poucos desvios sociais. Nestes anos, ela não só viveu aparentemente livre, mas gozando de todos os seus direitos civis.

Os detalhes do caso são brutais e refletem o racismo estrutural tão marcante por aqui. A gravidade e desumanidade do crime cometido são objetos de exame exclusivo, porém, nesse momento, a análise realizada é sobre as limitações legais para exposição dos envolvidos no caso.

Felitti narra a história com extrema cautela e profissionalismo, divulgando somente as informações que ele tem direito de divulgar. Quando menciona pessoas relacionadas a Margarida, os dados capazes de identificar essas pessoas não são divulgados. Ainda assim, os ouvintes mais fervorosos trouxeram mais informações à narrativa, chegando até mesmo a expor o nome da vítima, do filho de Margarida e tentando envolver outros familiares na história, pensando ser razoável atribuir o mesmo nível de exposição e publicidade de informações a essas pessoas.

O direito à privacidade, intimidade, dignidade e honra são direitos fundamentais, mas não absolutos. Profissionais do jornalismo têm liberdade para divulgar informações que envolvem o interesse público. Entre tantas disposições, a Constituição Federal versa sobre a liberdade de informação jornalística, manifestação do pensamento, expressão da atividade intelectual e de comunicação e o livre exercício da profissão. Todos esses direitos devem ser exercidos com o limite à finalidade de informar, o que exige moderação.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em seu artigo 4º, também garante o tratamento de dados pessoais para fins exclusivamente jornalísticos, desde que sejam empregadas medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular desses dados.

É natural que um crime bárbaro e cometido relativamente há pouco tempo, com uma narrativa meticulosa e atenta, desperte o interesse de tantas pessoas. Entretanto, mesmo que naturais, as reações atravessam o campo da curiosidade plenamente justificável e vão de encontro a outra esfera que não pertence aos ouvintes interessados em acompanhar cada detalhe não contado: a privacidade do outro, que não pode ser violada sem as exceções legais acima mencionadas.
Chico menciona diversas vezes esses limites, ao dizer que ele não tem o direito de expor uma pessoa que, apesar de ter relações muito próximas com quem cometeu o crime, não pode ser relacionada diretamente a uma história de grande repercussão sem escolher estar ali, sem ter um direito relativizado por não estar vinculado a qualquer investigação ou condenação criminal.

Via de regra, se não há interesse público ou se a finalidade de informar foi alcançada, a privacidade e intimidade das pessoas devem ser resguardadas. O tema é extenso e desafiador e, por hora, destaca-se que, ainda que exista comoção geral e revolta pelo crime cometido que restou impune à principal agente, Margarida, não é proporcional que as pessoas próximas a ela tenham sua intimidade, privacidade e honra violadas.

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