Marcela Gomes Gambardella, advogada das áreas de direito digital e proteção de dados da Roncato Advogados. LL.M em direito e economia. Artigo publicado no Valor Econômico
Frente ao avanço da pandemia pela COVID-19 e seus danos extremos, muito vem sendo discutido sobre as adaptações necessárias para assegurar uma nova realidade. À proporção que países têm sido bem-sucedidos na imunização da população, medidas circunstanciais vêm sendo propostas. Grande parte dessas medidas envolvem direitos fundamentais conflitantes e exigem um esforço comum dos Estados para estabelecerem limites éticos ao apreciar a implementação de modelos disruptivos na retomada da livre circulação.
No contexto da vacinação, há diversas tendências a serem analisadas. Recentemente, o debate sobre a implementação de programas de certificados de vacinação como pré-requisito para circulação de pessoas está em evidência. Apesar de ser frequentemente chamada de “passaporte de vacinação”, vale destacar que a medida não está relacionada a viagens internacionais exclusivamente; os certificados podem ser solicitados em ambientes públicos ou privados, seja em uma casa de shows ou em uma estação de trem, afirmam especialistas.
Nesse sentido, o exemplo mais efetivo é o de Israel. O país lançou um passaporte de vacinação como forma de se reerguer dos efeitos de um longo lockdown. Foi liberado um aplicativo para que a pessoa já vacinada disponibilize alguns dados que servem como prova de que ela não é um potencial risco para ambientes comuns. É possível demonstrar se a pessoa já foi vacinada, se já se recuperou do vírus e, ainda, apresentar testes negativos recentemente feitos pela pessoa.
Apesar de seu potencial promissor, a medida adotada apresenta muitos obstáculos e ainda não é possível prever suas implicações em um cenário global, motivo pelo qual vem sendo bastante criticada. Alguns apontam que os passaportes de vacinação fundam-se em preceitos discriminatórios, visto que fatores sociais são substanciais para se ter acesso à vacina.
A crítica se fortalece, ainda, na discussão sobre privacidade e proteção de dados. Os passaportes de vacinação têm a capacidade de revelar dados sensíveis. Os certificados podem revelar informações que atingem a privacidade do titular e que podem estar desatualizados, estando mais vulneráveis a vazamentos. Cumulativamente, pelo fato do aplicativo não ser desenvolvido por código aberto, terceiros especialistas não podem verificar o nível de exposição e segurança das informações. Alguns já argumentam que o uso sem precedentes desses instrumentos de controle pode ser uma nova catástrofe.
A União Europeia também já aprovou um modelo de passaporte de vacinação, nomeado como “certificado verde digital”. De acordo com a Comissão Europeia, o sistema coleta apenas “informações essenciais”, com a finalidade de facilitar o trânsito livre e seguro de pessoas entre países europeus, sem o intuito de limitar o exercício da liberdade de circulação. As informações contidas no certificado terão sua autenticidade verificada através de um QR Code e serão disponibilizadas no idioma oficial do Estado-Membro emissor e em inglês.
Nessa direção, há indícios de que, desde o início da pandemia, a Apple e o Google estejam colaborando em criar padrões para rastrear a exposição ao vírus através de smartphones. A IBM recentemente lançou um passe digital de saúde, a princípio para colaborar com o Estado de Nova Iorque, que usa a tecnologia de blockchain para verificar as credenciais de vacinação e testes.
No Brasil, ainda é cedo para fazer uma análise mais factível da implementação das medidas em questão. Entretanto, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, pontuou que não há vedação para a adoção de medidas restritivas indiretas, como o “impedimento ao exercício de certas atividades ou a proibição de frequentar determinados lugares para quem optar por não se vacinar”. Conjuntamente, foi ressaltada a possibilidade de que, no âmbito municipal, medidas sejam estabelecidas em shopping centers e restaurantes, por exemplo.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) também abrange a categoria designada como dados pessoais sensíveis, que são informações que podem se relacionar a situações de vulnerabilidade e discriminação. Dados referentes à saúde estão incluídos nesse rol e, portanto, merecem uma atenção especial. O vazamento de tais dados são capazes de ocasionar danos ainda maiores para os titulares desses dados e para os responsáveis por esse vazamento. Assim, o tratamento de dados sensíveis deve ser visto como um risco e, para que seja mitigado, há que se tomar decisões prudentes e coordenadas.
Por fim, ainda que existam desafios éticos e legais, a aposta de especialistas é de que essas exigências serão práticas comuns ao redor do mundo e, sobretudo, essenciais para o restabelecimento de uma realidade favorável em um mundo pós-pandemia. Faz-se necessário observar as ações dos setores públicos e privados, para garantir que exista uma regulamentação dessas medidas, se preciso for, e que o princípio da equidade seja respeitado.